sexta-feira

Epifania (ou dia das crianças)

William Bouguereau. La tricoteuse (1882)

Para contar o que aconteceu hoje eu voltarei e contarei de antes. Muito antes, em algum instante imemorável da minha infância, me deram para carregar asas. Elas eram feitas de metal lustroso e cobertas por pequenas penas brancas, parecidas com algodão puro e imaculado. Era realmente adorável vê-las ao vento, como elas eram grandes e me cobriam igual armadura de doçura estrategicamente posicionada. Mas elas eram grandes e pesavam. Não consigo lembrar quando comecei a carrega-la, mas recordo muito bem dos momentos em que passei em sua companhia. Carregava com orgulho, caminhava para a escola e me sentava em uma carteira, com aquele estranho objeto em minhas costas. Permanecia em silencio, um de falsa timidez, até que alguém observasse a brancura das penas esvoaçantes. Esse alguém falava para outro alguém que falava para outro, até que eu estava completamente cercado por pequenos amiguinhos e até mesmo a professora. Todos observando como eu manejava com graça aquele monumento com base de metal. Em casa eu também recordo: o estudante exemplar, nem uma nota vermelha, o pequeno leitor da família, e até pasmem, o clássico. Muitos adjetivos e complementos para um substantivo de fato tão pequeno. E na mesa de jantar, eu me sentava com dificuldade porque a maior parte da cadeira era para elas. Cresci e carreguei comigo, até que em certo ponto eu me olhei no espelho. As penas permaneciam brancas e intocadas, e o metal que as sustentava ainda era lustroso como sempre. Cansaço era o que eu sentia ao olhar para elas, nada mais.  Foi com dor que segurei aquele metal, ele estava tão grudado em mim que deixou marcas na pele ao ser removido. Nos primeiros momentos senti falta dos olhares da família, de um momento para o outro passei a normalidade e na rua já não se ouvia aquele burburinho. Senti falta da perfeição. Mas tirar um peso constante significa correr mais rápido, tão rápido que se sente medo de desgrudar da terra. E hoje, sem asas de bondade, entrei em um orfanato. Crianças gritavam, corriam e comiam. Eu e meus amigos íamos fazer uma peça e doações de livros. Além disso, eu ia doar uma parte de mim, meu companheiro de infância e só os deuses sabem como foi difícil faze-lo. Tudo aconteceu melhor que esperávamos, as crianças responderam a nossa atuação amadora e se emocionaram, mas passada a hora da diversão, chego, a partida. A hora de me desfazer do meu companheiro. Senti vontade de coloca-lo na mochila, como se ninguém estivesse vendo e leva-lo para casa. Mas uma no meio daquelas crianças chamou minha atenção, não havia nada nela que a tornasse diferente das outras. Era morena, e sorria desinteressada. Caminhei até o seu encontro e o que aconteceu foi natural. Sentei ao seu lado e contei a primeira estória do meu companheiro. Ela me olhava atenta, escutando cada palavra. Aquela atenção natural era estranha, seus pequenos olhos não olhavam nada atrás de mim. Ela escutava e quando percebi estávamos cercados de crianças afoitas. Algo mais estranho que aquele olhar estava acontecendo, sem dor, natural, misteriosa e milagrosamente, como um pé de feijão rompe a casca vagabunda de uma semente, algo estava acontecendo. Em minhas costas brotavam novas asas, mais brancas e imaculadas que as outras antigas. Elas eram naturais. Não pesavam e se movimentavam sem nem uma dificuldade. Talvez aquela garotinha as tenha visto antes mesmo de eu saber. Quem viu primeiro não importa. Elas eram lindas, lindas como nem uma mão humana pode ser. Naquela oportunidade, eu estava puro, talvez nunca tivesse tocado em carne ou bebido vinho. E se houvesse feito, aquelas crianças teriam apagado de tal forma que nem eu mesmo conhecia. Eu poderia alçar voo e sair dali de uma forma magnifica. Todos olhariam para mim como um super-herói, aquelas crianças nunca esqueceriam. Porém seria injusto demais, o máximo que podia ser feito era agradecê-las da melhor forma possível, por terem me mostrado uma face desconhecida dos deuses. Então ali mesmo onde estava, arranquei pena por pena, das minhas magnificas asas novas e entreguei uma por uma a cada criança. Não houve dor, ou sentimento de perda. O que existia era gratidão, a cada pena branca e dourada ofertada àqueles pequenos seres.
Era hora de ir, a maioria saiu correndo como pequenas formigas, umas sobre as outras naquela algazarra infantil. Terminei eu nu comigo mesmo, em silêncio e grato por não ter nada. Aquela mesma primeira garotinha veio até mim, me curvei para poder olha-la nos olhos, ela em silêncio me abraçou por um instante e em poucas palavras disse “obrigado, tio”. E partiu. Muito obrigado por me permitir contar.

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